domingo, 18 de novembro de 2007


Sem título

- Senta.
- Não, obrigado. Trabalho sentado o dia inteiro e agora acho melhor ficar assim – esticando as pernas – entende?
- Entendo.
- Mas e você – o que tem feito?
- Eu estou escrevendo um livro.
- Sério?
- Sim.
- E do que fala esse seu livro?
- Fala de amor.
- Sério?
- Sim.
- Poxa, que legal. Você sempre quis ser escritor, né?
- Sempre.

Flávio e Felipe eram amigos desde os cinco anos de idade. Flávio sempre se lembrava do dia que viu a mudança da família de Felipe chegando num caminhão e parando na casa vizinha a dele. Havia de tudo naquele caminhão de mudanças. Foi a primeira vez que Flávio viu uma tartaruga. Também foi a primeira vez que viu um papagaio. E havia, ainda, cachorro, gato, tio, avô e avó. A família de Felipe era grande. E o garoto chegava, junto com a mudança, carregando debaixo do braço uma bola de couro novinha. Também foi a primeira vez que Flávio viu uma bola de couro. Aquelas duas crianças se tornariam grandes amigos a partir daquele momento.

- Tem visto a Carla?
- Nunca mais. Acho que ela foi morar em outro Estado. Ela sempre falava em morar no Nordeste, né?
- É.
- Mas me conta: esse livro já tem quantas páginas?
- Muitas. Na verdade eu já o terminei.
- Sério?
- Sim.
- Poxa. Não sabia. Quer dizer que você já escreveu tudo? Poxa. Nem sei o que dizer.
- Tudo ainda não, Felipe. Falta o título.
- Título?
- É.
- Poxa Flávio, mas o título é o mais fácil.
- Você já escreveu algum livro, Felipe?
- Não. Claro que não. Mas acho que o título é fácil. Poxa, Flávio, quem escreve um livro escreve um título, né?
- É? Não sei. Esse é o primeiro livro que escrevo.

Flávio estava internado fazia quase 15 anos. Tudo havia começado numa tarde de domingo de 1993. Depois de almoçar com a família, Flávio começou a falar algumas coisas desconexas. No princípio seus familiares acharam que era uma brincadeira. Flávio sempre teve um humor ácido. Mas não demorou muito e todos perceberam que algo estava errado. Flávio passou a olhar mais fixamente para seus interlocutores e a falar mais pausadamente que de costume, e com raciocínios nem sempre muito lógicos. O jovem de 17 anos, aspirante a escritor, repentinamente, havia enlouquecido.

- Bonita sua camisa.
- Você gostou? Foi a Suzana que me deu. Ela comprou uma para mim e outra para o Thiaguinho.
- Thiaguinho?
- É. Meu filho com a Suzana, Flávio. Poxa, eu já te falei dele das outras vezes que vim aqui.
- Falou? Não me lembro.
- Falei. Ele já está com 5 anos. Ele é demais. Eu sou o pai mais feliz do mundo.
- Eu nunca tive um filho.
- Um dia você vai ter, Flávio. Um dia você vai ter.
- Que nome você acha que eu devo dar?
- Para seu filho?
- Não. Para o meu livro, Felipe.
- Ah, tá. Não sei, Flávio. Você disse que ele fala sobre amor, né?
- É.
- Sei lá. Você sabe que eu nunca fui bom nessas coisas, né?
- No amor?
- Não. Em títulos, Flávio. O escritor da escola sempre foi você, lembra?
- É. É mesmo, né?

Felipe visitava Flávio uma vez a cada seis meses, pelo menos. Não era uma tarefa fácil para Felipe sair do trabalho e ir para um sanatório visitar seu grande amigo. Ele ia pelos velhos tempos. Mas era complicado encontrar Flávio naquela situação – sempre tão alheio a tudo e vivendo num mundo particular. Felipe queria que Deus mudasse tudo e que aquela tarde de domingo de 1993 nunca tivesse existido. Mas Deus nunca mudou nada e, também, nunca ninguém descobriu os motivos da loucura de Flávio. Nem sua família, nem a namorada Carla, nem os amigos e nem os médicos. Tudo se tornou um mistério. O fato é que aquele jovem alegre e que queria ser escritor nunca mais foi visto escrevendo uma linha se quer.

- Oi, Pedro.
- Oi, Felipe. Visitando o Flavião?
- É. Vim dar um abraço no meu camarada.
- Valeu, cara. A gente que cuida dele todo dia sabe o quanto você gosta do cara. Amizade é isso, viu? Acho bonito pra caramba.
- Ele disse do livro de novo, Pedro. Ele tem escrito alguma coisa?
- Tem nada, Felipe. Eu nunca vi ele escrever uma palavra se quer.
- Eu imaginei. E ele vive dizendo que só falta o título, né?
- É. Ele diz que o livro está pronto, mas está sem título. Sabe o que eu acho? O livro está dentro da cabeça dele, cara. Está tudo lá. Bagunçado. Misturado. Mas está tudo lá. Nesse mundo não existe gente louca – só um pouco confusa, você está me entendendo?
- É. Deve ser isso mesmo, Pedro. Eu vou indo. Cuida bem do meu amigo, aí.
- Pode deixar. O Pedrão resolve tudo por aqui. Vai com Deus, Felipe.

Nota do autor: no último 15 de novembro, quinta-feira, por volta das 23h00, o corpo de Flávio foi encontrado caído no banheiro de seu quarto, no Sanatório Reflexão e Paz. A morte repentina e sem causas aparentes do jovem de 30 anos surpreendeu a médicos e enfermeiro da clínica. No entanto, a maior surpresa mesmo foi encontrar, ao lado de seu corpo, um calhamaço de 350 páginas, escritas a mão, e trazendo na primeira página o título: A LOUCURA NUNCA ME IMPEDIU DE AMAR.





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