terça-feira, 18 de dezembro de 2007


Doce desespero

A noite estava com cheiro de sangue. Os vários anos de profissão me ensinaram a distinguir o cheiro de sangue de qualquer outro cheiro nesse mundo. Quando o vento soprava esse fedor adocicado em meu nariz, eu arregalava os olhos e prestava muita atenção para que esse sangue nunca fosse o meu. Sendo assim, a chance de eu permanecer vivo aumentava. Mas era certo que alguém, perto de mim, talvez não tivesse a mesma sorte.

Estava tudo quieto na rua. Nunca gostei disso. Rua à noite tem que ter barulho de cachorro, de gato, de rato e, ou de mosquito. A vida me ensinou que se nenhum som desse é ouvido – sinal que tem o bicho-homem por perto. E o bicho-homem sempre foi e sempre será o pior bicho. Portanto, andei por que tinha que andar – mas esperava o perigo, a qualquer momento, e ele veio.

-Aí tio, isso é um assalto! Não reage, tio! Não reage, porque nóis (sic) mata você!

Eu olhei para o meu lado esquerdo e vi sair de um beco dois garotos. O que me ameaçava não tinha mais que 11 anos e segurava na mão direita um revólver calibre 32. Do seu lado outro garoto – esse calado – aparentando uns 9 ou 10 anos, no máximo, e que segurava, com as duas mãos, um pedaço de pau. Conhecia bem o tipo deles. Provavelmente uma vida difícil desde o nascimento até aquele instante. Nem sempre conheciam os pais e quando conheciam – normalmente não valera a pena terem conhecido. Aqueles garotos eram os bandidos que eu matava freqüentemente. Mas sempre eu os matava quando crescidos. Aquele ainda não era o momento. Eles deram sorte por serem tão jovens.

-Na moral! Calma, na moral! Estou tranqüilo! Só tenho a carteira aqui – podem levar! Na moral, porra! Calma que eu não vou reagir!
-Se reagir, nóis mata! Se reagir, nóis mata, já falei, tio!
-Beleza! Entendi! Estou tranqüilo! Na moral!

Os garotos pegaram minha carteira e saíram correndo no meio da escuridão. De repente o cheiro de sangue sumiu. Parecia até ter ido embora com os garotos. Eu estava armado, obviamente, mas já entregara a carteira nas mãos deles para que não percebessem minha arma enganchada ao cinto. O assalto tinha dado certo para todos. Eles levaram a minha carteira e eu fiquei com a minha vida. Uma troca justa, diante das alternativas. Nós três estávamos felizes naquele noite. O cheiro de sangue não me perseguira mais durante minha volta para casa.

Meu raciocínio era simplista. Eu tinha uns R$ 70,00 na carteira – xerox dos documentos – nunca gostei de andar com documentos originais – e uma foto de Alice. Coisas que eu recuperaria no dia seguinte, com toda certeza. Quanto aos garotos, guardara bem a fisionomia deles e torcia para que eles agüentassem vivos mais alguns anos. Um dia eu cobraria meus R$ 70,00 e eles entenderiam que aquele dinheiro ficou muito caro. Antes eles não tivessem me roubado. Um dia da caça, outro do caçador.

Obs: trecho do livro DOCE DESESPERO ainda em processo de escrita pelo jornalista Fábio de Lima.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007


Fábio

No próximo domingo, 09 de dezembro, eu, Fábio de Lima, jornalista e escritor, um contador de histórias, um estelionatário das letras, completo 31 anos. Parece que foi ontem. A vida passa rápida, caro leitor amigo do Comunique-se. E durante essa semana tenho sentido uma melancolia anormal. Penso que ela não tem nada a ver com a idade – com a síndrome dos trinta e poucos anos. Não, penso que não é isso. Acredito, realmente, que não é nada disso. Acho que é solidão de mim mesmo. Sei lá.

Na vida a gente nasce, cresce, reproduz e morre. Acho que foi isso que aprendi na escola. Mas a vida mesmo, a vida de verdade, nos reserva momentos menos previsíveis. E aí que mora o problema. Como lidar com as surpresas? Como ser o homem que é e não o homem que sonha em ser? Fiz análise durante um tempo. Escrevo, sempre, nas horas vagas. Sou um constante observador de mim mesmo. Tento me conhecer mais a cada instante e ser alguém melhor do que a realidade me leva a ser.

Quando comecei a escrever esse texto dei a ele o título provisório de Página virada. Mas, conforme o texto foi ganhando forma e estilo, percebi que havia mais de mim nele do que as outras histórias que costumo contar. Ele, sem pretensão inicial, desenha meu rosto, num pedaço de papel, com suas rugas de alegrias e tristezas ao longo da vida. Sim, num pedaço de papel, caro leitor amigo. Esse texto que você lê não é para o Comunique-se e nem para qualquer outro lugar ou para qualquer outra pessoa. Esse texto eu escrevo para imprimi-lo e presentear-me pelo aniversário desse ano. Esse texto sou eu diluído em palavras.

Enquanto escrevo, deixo as lágrimas escorrerem pela face. Não se assuste, caro leitor amigo. Não sinto depressão ou coisa similar. O fato é que sou assim – alguém que escreve os sentimentos e não os pensamentos. Minha solidão de hoje é só vontade de me olhar no espelho e encontrar minha alma. Rosto e corpo a gente vê todo dia – mas a alma, ah a alma..., a alma, só às vezes. Feliz aniversário, Fábio! Caro leitor amigo, meu presente desse ano é o encontro dos meus sentimentos com a minha literatura e comigo mesmo. Para completá-lo e deixá-lo ainda mais com a minha cara, peço apenas um poema emprestado do gênio Carlos Drummond de Andrade:

E agora, Fábio?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, Fábio? E agora, Você?

Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta? E agora, Fábio?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou, e agora, Fábio?

E agora, Fábio?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta;
quer morrer no mar, mas o mar secou;
quer ir para Minas, Minas não há mais.
Fábio, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....Mas você não morre, você é duro, Fábio!

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua para se encostar,
sem cavalo preto que fuja do galope, você marcha, Fábio!
Fábio, para onde?