domingo, 24 de junho de 2007


O discurso

Eu estava cego de medo. Entrei no auditório e vi uma multidão de manchas apenas. Não consegui distinguir rostos. Não consegui distinguir cabelos. Não consegui distinguir palco de platéia. Foi quando um perfume de mulher e voz doce, como só as mulheres podem e sabem ter, me pegou pela mão direita e me levou em direção ao microfone. Aquela mulher me ajudara muito nos últimos dias. Mas, estava frio naquele palco e, de repente, o silêncio se fez. Era um momento só meu e ninguém poderia mais me ajudar. Era o exato momento de eu falar. Mas falar o quê?

Todos esperavam frases inteligentes e espirituosas. Eu havia sido eleito, naquele ano, o melhor orador do Brasil, segundo uma votação da ABL (Academia Brasileira de Letras), e meu livro mais recente O DISCURSO era o mais vendido em 6 países da América Latina. No período de aproximadamente 7 anos eu deixara de ser um jornalista medíocre, com salário de R$ 2,5 mil, ao mês, para me tornar um dos grandes escritores da literatura contemporânea brasileira e um profissional das letras reconhecido em todo o mundo. Como? Este era o problema: eu não sabia!

Cerca de 4 meses antes, eu sofrera um acidente de carro. Fiquei em coma por 17 dias e quando voltei a lucidez tive uma amnésia estranha. Só lembrava algumas coisas da minha vida e não lembrava de uma pessoa se quer. Tudo que vivi estava confuso, mas muito confuso mesmo. Absolutamente tudo parecia trechos de filmes, mas sem começo e fim, apenas fragmentos, e sem rostos que me situasse junto às personagens. Eu era um homem de um passado e de uma história incrível, nas palavras de um monte de gente, embora eu mesmo não soubesse, com certeza, quem eu era.

Então, algumas pessoas se apresentaram como amigas. Uma senhora muito angelical se apresentou como minha mãe, um senhor muito brincalhão e desajeitado se apresentou como meu pai, e uma jovem muito simpática e prestativa se apresentou como minha irmã. Não bastasse, uma outra jovem, bastante atraente e alegre, se apresentou como minha esposa. Estas mesmas pessoas disseram que filhos eu não tinha ainda, mas, nos últimos anos, andava com muita vontade em tê-los.

Mas voltando ao palco, que acreditei, por alguns minutos, ser o local do meu calvário, lembro, agora, que respirei fundo e olhei atentamente para aquele monte de pessoas ansiosas e compenetradas na minha pessoa em cima do palco. Retirei as mãos trêmulas de dentro dos bolsos e segurei o microfone pendurado num pedestal. Os rostos foram ficando nítidos um a um. Meus olhos marejaram e segurei o microfone com mais força. Eu continuava sem me lembrar de nada, mas tive uma vontade imensa de falar. Quando a primeira lágrima desceu do meu olho esquerdo para a minha face tive certeza que era chegado o momento de começar o discurso.

"Bom dia para os que forem de bom dia. Boa tarde para os que forem de boa tarde. Boa noite para os que forem de Boa noite. Estou aqui hoje sem saber ao certo quem sou e sem ter a mínima idéia do que devo falar. Não me acho criativo o bastante para receber atenção de tantas pessoas. Dizem por aí que sou um grande escritor. Dizem por aí que sou um grande poeta. Dizem por aí que sou um grande orador. Confesso que nesse momento a única coisa que tenho certeza é do medo que sinto..."

"Tenho medo de muitas coisas, mas o principal medo, aqui, hoje, é decepcioná-los. Talvez um dia eu tenha sido tudo que vocês dizem que sou. Talvez um dia. No entanto, como sabem, um acidente de carro atravessou minha vida. Fiquei alguns dias sem consciência e depois de acordar me lembro de pouca coisa. Hoje sou apenas um homem confuso que, segundo os documentos, tem 33 anos de idade, nascido numa das maiores cidades do mundo, São Paulo, e num país subdesenvolvido chamado Brasil. Meus cabelos estão grisalhos, minhas rugas estão evidentes e mais nada..."

"Acredito que todos vocês esperam de mim, hoje, muito mais que tenho a oferecer. Portanto, lamento o inconveniente de ter tomado parte do tempo dos senhores. Sinto, muitíssimo também, pelo trabalho e pelo constrangimento que dou, neste momento, a tão simpáticas pessoas, que se dizem meus amigos e familiares. Eu queria muito lembrar de coisas importantes e poder falá-las com total conhecimento de causa neste instante. Mas, minutos atrás, tive que pedir ajuda para comer uma fruta chamada laranja, pois confesso para os senhores que eu não sabia como devia comê-la..."

Neste momento eu andei em direção a escada de descida do palco, enquanto enxugava as lágrimas com a manga da camisa. Então, uma voz de criança vinda da platéia gritou rasgando o silêncio instaurado:

- O senhor ainda tem medo da morte depois do que aconteceu?

Olhei para a platéia de volta e enxerguei, na primeira fileira, uma menina de aproximadamente 7 anos de idade acompanhada de um senhor e de uma senhora que acreditei, prontamente, serem os seus pais. Os 3 eram muito loiros e com olhos azuis e grandes. Pareciam uma família muito bonita e bondosa. Não sei explicar o motivo dessa minha imediata impressão, mas foi exatamente a que tive. Naquele momento algo aconteceu que eu também não sei explicar. Tive uma sensação de saudade e uma vontade enorme de continuar. Mas continuar o quê? Voltei ao centro do palco em direção ao microfone e recomecei.

"O ser humano costuma ter dois assuntos principais que gosta de falar. O primeiro deles é sobre quem ele é. O segundo é sobre quem ele gostaria de ser. Fora esses dois assuntos, ele costuma dizer muitas bobagens, mas a vida é muito curta para se dizer, se fazer e se sonhar bobagens. Na realidade, eu acho que todos nós, sem exceção, colocamos a morte em primeiro lugar, em detrimento da vida. Todos nossos erros são minimizados pela morte que um dia chegará, implacável, e teremos que passar por um juízo final. Todos nossos acertos são minimizados pela morte que um dia chegará, implacável, e teremos que passar por um juízo final. Ou seja, desde a hora que nascemos, esperamos a morte para corrigir e concluir tudo..."

"Eu não sei exatamente o homem que fui até o dia do meu acidente. Segundo os médicos, não há nada de errado comigo para que eu não lembre do meu passado. Mas, por algum motivo, que nem eu e nem os médicos sabem explicar, continuo sem me lembrar de nada. O fato importante que tenho a dizer para os senhores, hoje, é que não tenho mais medo da morte. De agora em diante, eu só presto reverências à vida. E espero que todos vocês consigam, em breve, fazerem o mesmo sem precisar, para isso, depararem com a morte. O passado não me serve mais para nada, mas sou, agora, o melhor homem do mundo, existindo e se renovando a cada novo momento. O discurso está terminado. Obrigado!"

Terminado o discurso fui invadido por uma paz e por um carinho, comigo mesmo, que, obviamente, não lembrava ter sentido antes. Pensei que, se aquele era um recomeço para minha vida, recomeçava bem. Vi meus familiares e amigos subirem ao palco e virem em minha direção. Abracei e fui abraçado por todos. Beijei e fui beijado por todos. Achei tempo ainda para olhar todo aquele auditório lotado, onde todas as pessoas abandonaram suas cadeiras para me aplaudirem de pé. Foi só neste instante que reparei não estarem mais, na primeira fileira, a criança loira, de olhos azuis e grandes, acompanhada de seus pais. Havia apenas 3 cadeiras vazias. Nesse momento lembrei de tudo que havia esquecido e tive certeza o quanto me fazia feliz ser um homem bom, sabendo discursar ou não.

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